É muito fácil chegar ao século XXI e proclamar a bíblia como «livro de metáforas», ou qualquer outra expressão pertinente, que apraza ao espírito de cada um. No fundo, são só palavras. Mas até que ponto esta consideração, que abrange todo o intelecto humano, é lícita? A questão aqui, não é o que nós, homens indolentes e pensadores a tempo livre, podemos subtrair de um livro «romanceado». A bíblia não é um livro comum. Não é como nada que exista na nossa sociedade ocidental, e tem arrastado toda a nossa organização social durante séculos. Não há como negar, que o homem vulgar, morto ou mortificado pelas leis bíblicas, na idade média, tenha parado para pensar: «ah, a bíblia é uma criação do homem!». Até Gutenberg, apenas os selectos tinham acesso a ela, e se em complacente eucaristia se viam as mensagens do senhor, então elas eram levadas à forma de dogma, e não de advertência poética. O que Saramago faz é mais do que criticar a igreja. Com efeito, aquilo que diz não é novo, como ele próprio admitiu, e já passou bastante tempo desde que, no século XIX, Nietzsche chocou a comunidade filosófica ao advertir que deus tinha morrido. Podemos recorrer a outros tantos autores, espíritos certamente elevados, que o proclamam também, indubitavelmente. O que não podemos perder de vista, é a constatação da forma pouco digna com que a palavra de deus foi apropriada pelo homem (sendo sua própria criação, ou não, dependendo da crença de cada um). Porque sim, há quem, em todos estes dois mil anos, tenha morrido pelo capricho da «sua vontade». A bíblia não é só um livro: tanto o antigo como o novo testamento são e foram uma forma de exploração do homem pelo homem, e não admiti-lo seria, isso sim, pura infantilidade. Saramago já o sabe, como tantos outros. A sua razão aqui não lança achas à mediocridade da visão humana; um grande escritor não escreve para vender, escreve porque deve. E se há em tudo isto uma ironia a retirar, seria esta: devemos agradecer aos céus, por um tão brilhante homem compartilhar a nossa pátria.
(Depois de ter, de forma frustrada, tentado escrever isto no público, ponho-o aqui, com propositada arrogância, para que me sirva, e para aquietar a minha agitação, que se indigna com tudo isto).
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